Restos
- Select a language for the TTS:
- Spanish Female
- Spanish Male
- Spanish Latin American Female
- Spanish Latin American Male
- Language selected: (auto detect) - ES
Play all audios:
a primeira vez que soube que havia gente que vasculhava o que comia nas traseiras de um restaurante foi num livro que, se não estou em erro, se chama quem me dera ser onda. não sei como
classifique esta obra, talvez como um pequeno enorme romance ou um comprido grande conto. lembro-me que a história percorre as extraordinárias aventuras do porco a vitória é certa em luanda.
eis um livro que recomendo sem qualquer hesitação nesta quadra natalícia. mas não é esse o motivo por que me veio à memoria. onde me encontro, as notícias de portugal chegam quando a
electricidade ou a ‘rede’ deixam. foi aos solavancos e aos pedaços que soube que cavaco silva e manuel alegre se travaram de razões por causa dos restos dos restaurantes. não sei se foi
grande ideia. vamos lá a ver se me explico. da segunda vez, não li, vi. foi em adis abeba, nas traseiras do hotel em que me encontrava. depois, foi em lisboa, no largo do mitelo. eram três.
rápidos e metódicos. tão rápidos e tão metódicos como os que vi em paris, não faz um mês. dito de outro modo: nas cidades do quarto, do terceiro ou do primeiro mundo há quem se alimente dos
restos dos outros. dos nossos restos, nós, os que temos com que ir a um restaurante. dito isto, perdoem-me a franqueza: é justo afirmar que a caridade e as iniciativas de solidariedade
apenas podem mitigar este tipo de pobreza extrema – a da fome. é ainda justo dizer que a eficácia no combate à pobreza exige, antes do mais, uma outra política de distribuição de
rendimentos. mas, sinceramente, nada do que acabei de escrever diminui a importância de uma iniciativa que aproveite os restos dos restaurantes e que os distribua por quem precisa. a
solidariedade da sociedade não é remendo para a pobreza, mas esta não a dispensa. arrisco mais: mesmo com um estado-providência decente, o combate à pobreza continuará a exigir formas de
empenhamento da ‘sociedade civil’ que com ele se articulem. dito isto, não tenho qualquer paciência para os números ‘apolíticos’ do principal político do atavismo nacional pós 25 de abril –
aníbal cavaco silva. que alguém que já foi primeiro-ministro e, após um prudente olvido, presidente da república, passe a vida a tentar passar uma imagem de ‘não político acima dos partidos’
quando é, seguramente, um dos grandes responsáveis pelo aumento das desigualdades no nosso país, é algo que não se deve tratar com indulgência. enquanto presidente, ele tem, evidentemente,
autoridade institucional para visitar uma festa para os sem–abrigo e apadrinhar uma campanha civil sobre os restos de comida. mas, nestas coisas, convém que ‘ser’ e ‘parecer’ coincidam. um
tipo decente, com respeito pelos pobres, evitaria este tipo de visita em contexto eleitoral. mas isto sou eu a pensar com os meus botões.