Seguro sob efeito de substâncias: Quando a embriaguez poderá excluir a indenização

Seguro sob efeito de substâncias: Quando a embriaguez poderá excluir a indenização


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O contrato de seguro, conforme disposto no art. 757 do CC1, é aquele por meio do qual o segurador se obriga, mediante o recebimento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado,


relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos previamente estipulados. Trata-se de uma relação contratual de natureza bilateral, aleatória e de execução continuada, que se ancora em dois


pilares fundamentais: a boa-fé objetiva e o equilíbrio atuarial.


A boa-fé objetiva impõe a ambas as partes contratantes o dever de lealdade, transparência e cooperação, sendo especialmente relevante na fase pré-contratual, durante a formação do contrato,


e ao longo da sua execução. Já o equilíbrio atuarial assegura que o valor do prêmio corresponda, de forma proporcional, à extensão do risco assumido pelo segurador, preservando a viabilidade


econômica da mutualidade.


Nesse contexto, a embriaguez do segurado - entendida como estado de alteração das faculdades cognitivas e psicomotoras em razão da ingestão de álcool - reveste-se de especial interesse


jurídico, por potencialmente representar agravamento do risco originalmente contratado. Tal agravamento pode repercutir de forma diversa conforme a natureza do seguro, exigindo análise


casuística e interdisciplinar.


No seguro de vida, cujo objeto é a proteção da vida humana - bem jurídico de natureza existencial e indisponível - a repercussão da embriaguez apresenta particularidades. A subscrição do


risco se baseia em critérios biométricos, como idade, sexo, histórico médico e hábitos declarados pelo proponente. O consumo eventual ou social de bebidas alcoólicas, por não constituir


condição estrutural nem comportar caráter contínuo, não costuma, por si só, interferir significativamente na tarifação do prêmio.


A exclusão da cobertura com fundamento na embriaguez só encontra respaldo legal quando configurado o agravamento intencional do risco, nos termos do art. 768 do CC2. Tal agravamento exige a


demonstração de uma conduta consciente e voluntária do segurado, com vistas a aumentar a probabilidade de ocorrência do sinistro. Nos casos de embriaguez transitória, sem o dolo específico


de provocar o evento morte - como ocorre, por exemplo, em situações de lazer ou consumo moderado - não se caracteriza, via de regra, a intenção de fraudar o contrato.


Importante frisar que apenas a ingestão deliberada de álcool com o intuito de abreviar a própria vida poderia ser juridicamente assimilada ao suicídio premeditado, o qual também possui


tratamento legal específico (art. 798 do CC)3. Ademais, a demonstração do nexo causal entre o estado de embriaguez e o evento morte - especialmente em contextos não acidentais - é marcada


por elevada complexidade técnica e probatória, o que torna inadequada qualquer exclusão automática de cobertura com base nessa condição.


Nesse viés, destaca-se que o STJ já firmou entendimento nessa matéria por intermédio da súmula 620, ipsis litteris:


Logo, ressai cristalino que, no caso dos seguros de vida, em geral, a seguradora deve arcar com a indenização, ainda que o segurado esteja embriagado, salvo na hipótese de complexa


demonstração do agravamento intencional do risco.


Diferente é o tratamento jurídico da embriaguez no âmbito do seguro de responsabilidade civil, em especial aquele relacionado à condução de veículos automotores. Nessa modalidade, o objeto


do seguro é o ressarcimento de danos causados a terceiros, decorrentes de condutas culposas ou, em certos casos, dolosas do segurado. Trata-se de um seguro que, por sua própria natureza,


carrega forte função social e atende à teoria da dupla função: garantir proteção patrimonial ao segurado e assegurar a reparação ao terceiro prejudicado.


A embriaguez ao volante constitui, além de infração administrativa e crime previsto no art. 306 do CTB4, um dos principais fatores de risco para a ocorrência de acidentes graves. Nesse


sentido, a ingestão de álcool pode configurar agravamento relevante e não comunicado do risco, autorizando a exclusão da cobertura securitária nos termos do art. 768 do CC.


Todavia, essa exclusão encontra limites jurídicos quando confrontada com o direito do terceiro lesado. A jurisprudência dominante - com fundamento nos princípios da função social do contrato


e da proteção da vítima - tem reconhecido que a seguradora não pode se eximir do pagamento da indenização ao terceiro prejudicado, ainda que a embriaguez do segurado esteja comprovada.


Senão, veja-se o entendimento do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva no REsp 1.684.228/SC:


Destarte, as seguradoras podem alegar a exclusão da cobertura de seguro de responsabilidade civil em caso de embriaguez na hipótese de demonstração do agravamento do risco, mantendo-se


responsável, todavia, por terceiros envolvidos. Nesses casos, a seguradora preserva o direito de regresso contra o segurado causador do dano, realinhando o desequilíbrio contratual sem


comprometer os direitos do terceiro de boa-fé.


No seguro de danos materiais, especialmente aquele que protege o patrimônio do próprio segurado, como o seguro de casco de automóveis, a análise da embriaguez se dá sob a ótica da culpa


grave e da violação do dever de conservação do bem. A condução de veículo sob influência de álcool, principalmente quando associada a outros fatores de risco - como excesso de velocidade,


transposição indevida de sinal vermelho ou condução em via incompatível com o tráfego - pode ser interpretada como descumprimento do dever contratual de diligência.


Nessas hipóteses, demonstrado o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez e a ocorrência do sinistro, a negativa de cobertura encontra respaldo técnico e jurídico, e a cláusula de


exclusão se torna plenamente aplicável. Por se tratar de relação contratual estrita, sem reflexo direto sobre terceiros, a exclusão de cobertura restringe-se ao próprio segurado, sendo


válida desde que redigida de forma clara, expressa e inteligível, conforme exigência do art. 760 do CC5.


Nesse âmbito, tem-se entendimento firmado pelo egrégio TJ/MG acerca da possibilidade de recusa da seguradora de indenizar o segurado por danos materiais em caso de embriaguez, in verbis:


Assim, a cobertura securitária referente aos danos materiais pode ser excluída em caso de embriaguez do segurado, desde que devidamente estipulada e demonstrado o nexo causal com o sinistro


objeto da indenização.


A avaliação da embriaguez no contrato de seguro deve se pautar por critérios técnicos objetivos, sob pena de decisões arbitrárias e insegurança jurídica. Os parâmetros legais previstos na


legislação de trânsito - como o limite de 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou 0,3 mg por litro de ar alveolar expirado - constituem balizas técnicas para aferição do estado de


embriaguez.


A validade dos meios de prova utilizados, tais como etilômetro (bafômetro), exames laboratoriais ou perícias toxicológicas, deve observar critérios rigorosos de cadeia de custódia,


calibração dos equipamentos e margem de erro admissível. Tais provas devem ser acompanhadas de outros elementos que corroborem o vínculo causal entre o estado etílico e o evento danoso,


afastando conclusões baseadas exclusivamente em presunções genéricas ou estigmatizações do comportamento do segurado.


Outro aspecto jurídico relevante diz respeito à análise do elemento volitivo da conduta do segurado. A embriaguez voluntária, ainda que reprovável, não se equipara automaticamente ao dolo.


Apenas quando houver evidência de que o segurado assumiu conscientemente o risco de produzir o sinistro - hipótese de dolo eventual - poderá ser aplicada com legitimidade a cláusula de


exclusão de cobertura.


A distinção entre dolo eventual e culpa consciente, embora tênue, possui implicações jurídicas profundas. Enquanto na culpa consciente o agente acredita sinceramente que o resultado danoso


não ocorrerá, no dolo eventual há aceitação do risco, o que aproxima a conduta da fraude contra o contrato. Essa análise exige abordagem fática minuciosa, respeitando os princípios do


contraditório e da ampla defesa.


Conclui-se que a repercussão jurídica da embriaguez nos contratos de seguro é tema complexo e multifacetado, que exige tratamento técnico, ponderado e compatível com os princípios


estruturantes do direito securitário. A aplicação de cláusulas excludentes deve obedecer ao princípio da boa-fé objetiva, à função social do contrato e à proteção do legítimo interesse do


segurado e de terceiros.


A exclusão da cobertura com fundamento na embriaguez deve ser exceção, jamais regra, e somente se legitima quando baseada em prova robusta, tecnicamente embasada e juridicamente válida.


Assim, decisões automáticas, arbitrárias ou ancoradas em estereótipos comprometem a estabilidade da relação securitária e desestimulam a confiança no instituto do seguro, essencial para a


gestão de riscos em sociedade.


1 Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos


predeterminados.


Parágrafo único. Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para tal fim legalmente autorizada.


2 Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato. 


3 Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de


suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.


4 Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:          


Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.


I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou          


II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.            


§ 2o  A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em


direito admitidos, observado o direito à contraprova.


§ 3o  O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia ou toxicológicos para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.


§ 4º  Poderá ser empregado qualquer aparelho homologado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia - INMETRO - para se determinar o previsto no caput.   


5 Art. 760. A apólice ou o bilhete de seguro serão nominativos, à ordem ou ao portador, e mencionarão os riscos assumidos, o início e o fim de sua validade, o limite da garantia e o prêmio


devido, e, quando for o caso, o nome do segurado e o do beneficiário.